Francesca Negro
Nem público nem privado
A ideia desta publicação nasceu de um sentimento de urgência, da necessidade de exprimir a condição de precariedade típica da nossa época, que já se concretiza sob a forma duma enorme mudança no valor de alguns paradigmas fundamentais e dos elementos – espaços, objectos, lugares e instituições – a eles ligados. Público, comunidade, íntimo e privado são conceitos cada vez menos lineares e sobretudo de difícil distinção entre si. Surgiu, então, naturalmente a vontade de perceber as origens e as razões destas mudanças na cultura e sociedade contemporâneas.
Se antigamente o adjectivo comum queria designar a relação com uma comunidade, definindo um qualquer elemento acessível a todos os seus membros, actualmente este termo tende a perder o carácter de privilégio, de direito ou benefício, para vir a sublinhar uma condição progressivamente mais negativa, de privação, de obrigação à partilha: indicando não “o que deve ser partilhado” mas “o que tem que ser dividido”.
Esta diferença entre partilha e divisão é fundamental e sublinha uma mudança de carácter ontológico no conceito de Bem comum. O termo público passou por uma revolução ainda maior e, como salientou Guy Debord, a crescente ligação do poder político ao poder económico criou incongruências e mudanças que influenciaram também os diferentes alcances semânticos da palavra. Já a partir dos anos 1960, Debord nota que a espectacularização da sociedade produziu novas categorias mentais bem como novos “produtos” e “espaços” de natureza híbrida, por tradição ligados aos conceitos de público, popular, mas, na realidade, de propriedade, gestão e legislação privadas (Debord 1971, 130-139). O termo público, de dupla natureza gramatical, podendo ser tanto adjectivo como substantivo, deriva, como esclarece Thierry Paquot neste volume, da palavra latina públicus, que, por sua vez, deriva de pop’licus, que provém de Populus: “do povo”. Ao derivar de um substantivo, o termo público nasce provavelmente com um valor adjectival, o de “o que é acessível a todos”, e presume-se que assuma só numa segunda fase o valor de substantivo, criando a noção de “Assistência, auditório: todos os que têm acesso, ou assistem, a algo” (Dicionário da Língua Portuguesa, Porto Editora). Tentando diferenciar, de forma muito sintética, o significado da palavra no âmbito saussuriano de langue e parole, e, portanto, reflectindo sobre a sua utilização na época actual, observa-se que hoje em dia o uso privilegiado no âmbito da conversação oral, bem como na escrita da imprensa, não é aquele de adjectivo mas o de substantivo: para indicar o público que observa, o sujeito colectivo ao qual a coisa pública é exposta. O que devia definir a “qualidade” de um evento, objecto ou espaço – público: feito para uma exposição pública – parece ter importância secundária relativamente ao “destinatário” do dito produto. De facto, no imaginário mais comum, a palavra público não se relaciona automaticamente com o tribunal do Areópago ou com a fundação dos princípios democráticos, mas mais facilmente com um estudo televisivo cheio de espectadores. Público, como adjectivo, poderia confundir-se perigosamente com o conceito de estatal, sempre mais enfraquecido e raramente empregue, pelo que a sua utilização é frequentemente substituída por “comum”, “comunitário” – outros termos que põem em relação o dito evento, objecto ou espaço não com uma multidão anónima mas com uma comunidade já circunscrita.
O imaginário humano muda, de forma rápida e incontrolável, e esta publicação pretende criar uma oportunidade para reflectir sobre as mudanças recentes e sobre a trans-formação dos nossos conceitos fundamentais, convencidos como estamos de que só desconstruindo e compreendendo a actualidade poderemos acompanhar o desenvolvimento de uma sociedade futura.
Outro conceito que, nas últimas décadas, se transformou radicalmente foi o conceito de privado: originária e etimologicamente “retirado” do espaço público para ser escondido, é hoje, pelo contrário, exposto como algo que completa a descrição da individualidade da pessoa fora dos contextos oficiais, tornando-se quase sinónimo do adjectivo pessoal.
De facto, como também afirma Thierry Paquot no livro L’Espace public (2009, 57), o espaço privado é uma invenção recente, do século XX ou pouco anterior, sendo o próprio espaço doméstico um espaço destinado à sociedade familiar: tanto que, nas descrições de contextos domésticos mais pobres, as pessoas procuravam o espaço privado fora de casa, na natureza, nos jardins, nas ruas ou, quando podiam, em garsonniers, cabinets, lugares alheios mas domesticados para dar lugar às exigências íntimas. A casa era o lugar da pequena comunidade familiar, em que os espaços são quase sempre partilhados e organizados hierarquicamente, dos mais públicos aos menos públicos, definindo naturalmente a abertura social da comunidade familiar e a sua maneira de gerir as relações. O espaço privado era privilégio apenas de alguns indivíduos que pertenciam a elites sociais; o privado nasceu com o bem-estar socioeconómico e a possibilidade de oficializar esta possibilidade de estar à parte, mas nasceu sobretudo com o desenvolvimento de uma noção mais completa e complexa de indivíduo.
Quanto mais se afirma a individualidade de um indivíduo, mais necessário parece ser distinguir “privado” de “público”: Plus l’individualité d’un sujet s’affirme, plus la distinction entre “privé” et “public” lui paraît essentielle.
"C’est à l’individu que revient en dernier lieu l’initiative de tracer la frontière entre ce qui lui paraît – selon sa propre échelle de valeurs – “privé” ou “public”. Cette frontière ne ressemble pas à un mur, rigide, inébranlable, tracé une fois pour toutes et solidement gardé, elle fluctue au gré des intentions de l’individu, d’où l’importance de l’entre-deux-positions ou du passage accéléré, quasi instantané, entre deux situations, l’une «privée» et l’autre “publique”, sans que cela génère une quelconque schizophrénie..." (Paquot 2009, 66)1
O indivíduo traça hoje um novo limite, entre o público e o privado, e amplia cada vez mais este último, fazendo dele um espaço de comunicação, de expressão pessoal e de encontro, segundo critérios totalmente subjectivos e únicos, com a sociedade circundante.
Finalmente, temos o termo íntimo, o elemento que se revela mais conservador e que define o que é próprio e disponível só à pessoa – intimus, superlativo de interior –, mas que tem hoje tendência para querer mostrar-se no espaço definido “privado”, deixando, portanto, de ser completamente interior – o mais interno, escondido – para procurar uma manifestação num nível intermédio, de diálogo com o exterior e no qual se verifica uma permanente contaminação entre o Outro e o Eu. A expressão da intimidade é também um fenómeno recente. Anteriormente, a intimidade situava-se apenas em cada um; o seu lugar de expressão são as relações, as trocas, a comunicação dos sentimentos, onde o que é íntimo se exterioriza e com o tempo muda de condição: sai de si e passa a ser algo partilhado apenas com pessoas admitidas no próprio círculo privado. Até poderíamos chegar a afirmar que são as manifestações do conteúdo da intimidade a construir a esfera do privado.
Os lugares de comunicação privilegiados da época contemporânea e as redes sociais são obviamente espaços de representação das mudanças ligadas à experiência da intimidade e ao campo de treino desta flânerie virtual entre o privado e o público, à procura duma comunidade que também ofereça condições para construir uma identidade individual de eleição. Por esta razão, hoje em dia os planos parecem confundir-se sempre mais, porque a identidade é negociada: é um conceito permeável sobre o qual elementos externos de outros espaços, fora do privado, exercem influências contínuas, e o sujeito pós-moderno, que, segundo Stuart Hall, é caracterizado por uma ausência de identidade fixa, está sempre em transformação à medida que variam as representações produzidas pelo sistema cultural (Hall 1992, 277).
Nasceu assim, com estes assuntos entre as mãos, a vontade espontânea de criar uma plataforma aberta, na qual um amplo número de disciplinas diferentes pudessem encontrar-se para confrontar os respectivos resultados, e de verificar em que medida a mudança destes paradigmas é visível e tem importância epistemológica. Neste sentido, podemos dizer que a nossa meta foi perfeitamente alcançada: as muitas e generosas contribuições que aqui se reúnem tocam quase todos os âmbitos possíveis em relação a este assunto. Não vou aqui tentar resumi-las nem antecipá-las, mas apenas abrir o caminho a algumas reflexões introdutórias para a leitura dos artigos que se seguem.
Começo, assim, por abordar alguns assuntos, talvez marginais, que, todavia, não deixam de me parecer interessantes ou “problemáticos”, com vista a oferecer uma leitura de alguns aspectos da nossa sociedade a partir da segunda metade do século passado até hoje.
É entre os anos 50 e 60 do século passado, com o aproximar-se duma época de bem-estar económico, que a sociedade ocidental começa a dar um forte sinal de mudança, reformulando as suas regras, as suas instituições, os seus espaços e também a sua estética para definir uma realidade sempre mais complexa e diferentemente permeável. O âmbito do Direito, que pode ser considerado uma boa base de leitura para as recentes transformações da sociedade, teve entre os anos 60 e 80 a sua transformação mais radical e uniforme nos vários países ocidentais, sobretudo com respeito à legislação da família e do trabalho, tema do qual trata o artigo de Fabrice Rosa neste volume. O estatuto de indivíduo é, pela primeira vez, assumido e defendido; começa-se a definir uma nova categoria de crimes que deixam de pertencer à legislação da moral social para se converterem em “abusos” ou “crimes contra a pessoa”, passando-se a catalogar alguns actos, anteriormente julgados apenas imorais, como acções lesivas do indivíduo.
Nesta época teve lugar a mudança da lei contra a violação sexual, considerada, a partir dos anos 60 e 70, em quase todos os países ocidentais, como crime contra a pessoa. Quase ao mesmo tempo decretou-se a legalização do divórcio, introduzido em defesa do direito privado dos cônjuges e em detrimento da, até então, granítica defesa da fundação familiar, abrindo assim uma disputa entre indivíduos e instituições e separando, nítida e definitivamente, os primeiros das segundas com vista a uma nova diferenciação entre direitos privados e públicos. A esses acresce a lei para a legalização da interrupção voluntária da gravidez, que começa na Europa em 1968, com a Inglaterra, para ser depois adoptada por quase todos os países2. Foi uma revolução social que revelou o progressivo enfraquecimento de alguns preceitos morais, que ganhavam força na sua ligação à poderosa máquina administrativa do estado, e levou a um processo de progressivo afastamento entre a moral social e o direito, bem como à oficialização duma sempre maior disparidade entre público e privado.
Stefano Rodotà foi um dos pioneiros do estudo da privacy e desenvolveu um grande trabalho sobre o conceito de direito à privacidade e sua protecção na sociedade contemporânea3; para ele, a característica principal da sociedade actual consistiria na necessidade de cada um obter benefícios em termos de identidade, e não apenas em termos de produtos comprados ou capacidades adquiridas. O espírito da afirmação baudelairiana “jouir de la foule est un art” (Baudelaire, Le Spleen de Paris, 1964) deu rapidamente lugar a uma forte necessidade de os indivíduos não se confundirem na multidão; ao prazer de se perderem na massa informe dos grandes grupos opõe-se hoje o esforço incansável de se reencontrarem consigo mesmos. O quotidiano é vivido no conflito entre sentirem-se inteiramente integrados e, ao mesmo tempo desejosos de sair do anonimato, de manifestar explicitamente a própria unicidade. A assimilação é, ao mesmo tempo, o maior medo e o maior desejo, vivendo-se, como afirma Liraz Lasry, na necessidade de ser “Different Like Everyone Else”4 – uma fórmula que depressa se tornou uma regra de marketing para a construção de produtos de sucesso.
Esta é apenas uma outra manifestação da contínua oscilação entre o desejo de ser parte duma comunidade e a necessidade egocêntrica de exibir a própria exclusividade. A identidade é percebida hoje como uma construção, um trabalho que tem como finalidade a de reconstruir a pessoa como um produto diferente e “fora do comum”, mas, ao mesmo tempo, esta unicidade deve estar obrigatoriamente ligada às categorias reconhecíveis para encontrar o gosto do “público”, ou seja, o da sociedade.
Estando menos claramente estabelecidos os assuntos éticos que a definem, a sociedade passou rapidamente a ser vivida como colectividade, termo mais neutro que designa um conjunto de pessoas que partilha regras sociais ou comunitárias. A diferença é subtil, mas nítida. Em âmbitos mais concretos da vida diária, a arquitectura começou a conceber espaços híbridos e a propor soluções alternativas para as novas dinâmicas interpessoais e familiares no contexto dum mercado em rápida expansão. A partir dos anos 50, na expectativa duma imigração massiva em direcção às grandes cidades de toda a Europa, houve um grande impulso para a construção de centros de habitação de dimensão extensa e, por vezes, gigantesca, cuja experimentação começara já nos anos '30 – como esclarece, neste volume, Simona Gabrielli. Um desses centros veio a ser escolhido como imagem de capa para a presente publicação: trata-se do Gallaratese, um dos primeiros exemplos de arquitectura social de grande dimensão construídos em Itália5. A partir desta época foram concebidas novas tipologias de espaços semiprivados ou semipúblicos que hoje em dia constituem o cenário, por excelência, da vida urbana familiar e profissional, plasmando a nova sociedade em novas formas e modelos de relações e interacções e abrindo enormes debates sobre o papel do ordenamento do território na organização social6. Do ponto de vista da gestão prática da sociedade, as artes do espaço foram as primeiras a ter de se adaptar à nova sensibilidade, o que levou não apenas ao nascimento de novos espaços de habitação para singles ou macro-arquitecturas que constituem mega-comunidades artificiais de desconhecidos, mas também à reformulação de todos os elementos da gramática urbana7.Nos anos 50, começou a criação de centros comerciais de grande escala (shopping malls), onde a associação de elementos comerciais se mascara duma sintaxe pseudourbana: onde os passeios reproduzem paisagens exteriores e onde, muito frequentemente, as principais artérias de passagem têm nomes de ruas, avenidas, praças e são decoradas com vegetação, para dar a ideia não dum espaço comercial privado mas dum espaço aberto e público. Os donos destes espaços são, na realidade, empresas inteiramente privadas, cuja identidade passa despercebida numa pluralidade de nomes de marcas diferentes, actividades comerciais e lúdicas diversificadas e eventos socioculturais comissionados pelas próprias empresas para dar a ilusão de que a riqueza do mercado é de livre acesso. Os clientes encontram nestes sítios de natureza comercial uma experiência de espectadores: ficam surpreendidos por algo imprevisto que alimenta a imagem do centro como local de diversão, de natureza variada e imprevisível, que reproduz o carácter da vida exterior. Exemplos do privado a invadir o território do público surgem todos os dias: das tentativas de gestão comunitária de espaços municipais, através da criação de hortas urbanas, ao controlo de espaços “oficialmente públicos” por parte de empresas privadas que querem preservar a segurança dos próprios locais, até à tendência para criar uma domesticação do território natural extra-urbano, através de práticas de exploração lúdicas, desportivas ou culturais, criando vivências que fundem as dimensões privada e global. Sobre este tema, neste volume, debruça-se o antropólogo Julien Glauser, tratando mais especificamente a cidade de Tóquio, onde a desproporção entre espaço público e privado é dramaticamente evidente.
Também no âmbito das artes, uma grande inovação nesta mesma época foi a criação de formas inéditas, que pertencem a diversos códigos artísticos, como as instalações ou site specific art, em que as artes plásticas se cruzam com as artes espaciais, englobando a própria presença e fruição humanas. Sendo estas peças destinadas normalmente a exposição em espaços abertos ou de passagem, elas constituem estratégias para solicitar a experiência dum produto artístico público e, ao mesmo tempo, expor publicamente uma fruição pessoal, por vezes até privada, do espectador, criando um território híbrido de fusão dos dois planos. Graças a novas formas de sugestão sensorial e estética, o indivíduo é, por vezes, convidado a fruir destas experiências artísticas de forma individual, por meio de solicitações sensoriais para depois, numa segunda fase, ser convidado a partilhar a própria experiência íntima, transformada em matéria artística, apenas disponibilizada pelo criador da performance. Estas experiências artísticas situam-se, de facto, num espaço intersticial entre a obra de arte pública e a vivência privada e trabalham com a elaboração e partilha da percepção sensorial da pessoa. É este o caso das obras de arte do arquitecto Didier Fiuza Faustino, e especialmente da instalação The Unbearable Lightness of Being (Chung 2012)8, projecto para um baloiço fora de escala que tem a finalidade de pôr o corpo humano em relação directa com a dimensão da megalópole, criando um contraste entre a fruição privada do brinquedo infantil e a dimensão pública do monumento de arte urbana:
Each project represents a concept that subverts the social context, in which seeing is experimenting beyond submission to the dichotomy of the rules that normally mark out public space and private space. The body is recentred on the basis of the social implications of the space, alerting people to the dangers of subjecting it to an ambiguity of representation that may contribute towards their forgetting its identity. (Fernandes 2009)
Estas formas artísticas são, por vezes, acções provocatórias, experiências que tendem a representar uma condição de solidão social ou de desadaptação do ambiente urbano face às exigências do indivíduo. Outros exemplos de arte em que o privado e o público se cruzam de forma incomum são descritos, neste volume, por Marta Traquino, artista e crítica de arte que trabalha com performances artísticas, em que abre espaços públicos às leituras pessoais dos visitantes e disponibiliza também espaços domésticos para experiências públicas, nas quais o resultado artístico consiste na própria vivência do espectador da obra. Estes tipos de actividades têm como efeito a superação da dicotomia das posições de artista – activo – e destinatário da obra de arte – passivo – e operam uma revolução no posicionamento do indivíduo face à sociedade, conferindo ao ponto de vista subjectivo e pessoal uma força inédita. Estas actividades valorizam interpretação subjectiva do espectador individual como algo único e excepcional. O resultado é uma forma de arte completamente interactiva, na qual o artista apenas põe à disposição a moldura e o espectador produz a obra; é uma mudança radical, uma verdadeira revolução na história da arte que questiona a relação entre público e privado.
No âmbito das artes performativas depois das inovações introduzidas por Judith Malina e o Living Theatre, e por Jerzy Grotowski entre os anos 1950 e 1970, uma revolução igualmente radical levou à criação de obras de teatro do improviso: representações nas quais o público participa na peça e colabora na criação do resultado artístico, criando situações cada vez diferentes que obrigam o actor a diferentes reacções. É, de facto, o jogo entre a imprevisibilidade da relação entre o espectador e o actor a constituir o espectáculo e a verdadeira experiência artística, dando vida a peças teatrais nas quais a fábula se apresenta incompleta, como um canovaccio9 da Commedia dell’arte, reinterpretado de forma sempre diferente. Também outros âmbitos das artes cénicas, como a dança, passaram no século passado por uma revolução semiótica, com a entrada em cena da dança contemporânea e a desconstrução do código coreográfico e corpóreo fixo do ballet, e com a reformulação operada antes por Isadora Duncan e depois por Martha Graham na sua obra Lamentation (1930), em que descreve, de forma subjectiva, sensações de agonia e aflição inteiramente ligadas à vivência íntima.
Esta última especialmente opera reinterpretando dramaticamente todos os elementos do código clássico: a força da contracção e descontracção do corpo tornam-se visíveis e carregadas de intensidade que revelam a primariedade do centro do corpo como lugar de origem do movimento e os seus limites como pontos de irradiação da energia interior do bailarino; a atração exercida sobre o corpo pela gravidade é explicitada numa contínua luta entre momentos de cedência e momentos de libertação. Todos os movimentos são contextualizados na lógica de um diálogo interior e subjectivo do qual a performance é revelação: o movimento é assim para sempre libertado do constrangimento da estética autorreferencial e é virado para fora, tornando-se gesto: direcionado à comunicação com o exterior.
É o início de uma revolução não apenas interpretativo-formal mas de permeabilidade entre o corpo do bailarino e o corpo do público, solicitando entre os dois uma troca empática, sem que a observação formal seja elemento preferencial. O interesse em novos critérios de performatividade leva à procura duma expressão de arte mais “onomatopeica”, adequada a uma representação mais natural e sincera da experiência corpórea do espaço. Os anos 60 revelam o génio de Pina Bausch. Com a sua obra inaugura-se uma expressão inteiramente fisiológica da experiência; a sua pesquisa leva a uma representação biodinâmica das sensações e das emoções, que se apresenta completamente desligada de qualquer código, que tem como único critério estético a veridicidade e a transmissão do íntimo e deriva ela própria duma condição de mudança que afectara o conceito de corporeidade.
A violência das sensações e dos sentimentos humanos sai pela primeira vez duma forma não mediada, nem pela palavra nem por um código de signos, nem pela relação com um qualquer material metafórico ou alegórico. A arte teatral tem a clara percepção de que a contemporaneidade é definida pela prioridade dada ao corpo como elemento estruturante da realidade subjectiva, e pela consequente definição do espaço como realidade projectiva das percepções corpóreas, da relação entre o eu psicofísico e a circunstância; assim exprime a mesma noção Michel Serres em 1977:
Mon corps, je n’y peux rien, n’est pas plongé dans une variété unique et spécifiée. Il travaille dans l’espace euclidien, mais il travaille seulement. Il voit dans un espace projectif, il touche, caresse et manie dans une variété topologique, il souffre dans une autre, entend et communique dans une troisième. [...] Mon corps n’est donc pas plongé dans un espace unique, mais dans l’intersection difficile de cette famille nombreuse, dans l’ensemble des connexions et raccordements à pratiquer entre ces variétés. Cela n’est pas donné, ou n’est pas, comme on dit, toujours déjà là. Cette intersection, ces raccordements sont toujours à construire. Et l’on dira malade en général qui manque cette construction. Son corps explose par la déconnection d’espaces. Ceci n’est qu’un début, ou n’est point le début réel, s’il existe. Mon corps habite, une fois encore autant d’espaces qu’en ont formés la société, le groupe ou le collectif. La maison euclidienne, la rue et son réseau, le jardin ouvert et fermé, l’église ou les espaces clos du sacré, l’école et ses variétés à point fixe, et l’ensemble complexe des organigrammes. Ceux du langage, de l’usine, de la famille, du parti politique, et ainsi de suite. Dès lors, il est plongé, non plus dans un espace, mais dans l’intersection ou les raccordements de cette multiplicité. (Serres 1983 [1977], 30)
As diferentes camadas, os diferentes níveis do corpo, as suas diferentes práticas de percepção e comunicação sobrepõem-se na criação do nosso ser dia após dia. As artes na época contemporânea procuram dar conta desta complexidade e desconstruir as aparentes incongruências e os conflitos que definem a natureza humana e assim descobrem uma nova maneira de ser, em que a ideia de sujeito unitário é desconstruída, e com ela qualquer outra ideia dicotómica da sua relação com um mundo a ele exterior.
Esta crise da unidade do sujeito permite a introdução de dois elementos novos: por um lado, o conceito de circunstância (Távora 1968), de centralidade da situação, do momento, que se constitui como uma nova unidade de medida do real – o evento –, e, por outro lado, a fragmentação do corpo numa miríade de pontos sensíveis activados de forma autónoma no contacto com o real (Hall 2000). Estes dois pontos são desenvolvidos na seminal experiência artística de Pina Bausch, que levou o teatro à pura expressão corpórea, libertando a dança de qualquer esteticismo simbólico e abstracto para deixar falar a voz interior e substituir o diálogo verbal por interacções proxémicas e representações cinéticas espontâneas da vivência pessoal. O íntimo é representado integralmente no gesto, nas vocalizações espontâneas, na respiração evidente, e o privado torna-se sujeito privilegiado da arte cénica, deixando de lado o conceito de exibição para o público, que não é chamado a ver mas a sentir. A finalidade da obra é despertar a empatia do espectador bem como sensações por meio da representação da própria experiência pessoal. O palco torna-se um território híbrido, uma porta para o espaço limiar do privado, no qual a intimidade procura uma forma para comunicar. O que o sujeito transmite é, portanto, uma condição sua, explodida, uma omnipresença sensorial que se liga a uma perda de centralização do sujeito.
Este ponto está bem expresso na literatura contemporânea, em que uma polifonia de pontos de vista substitui a força ordenadora dum eu narrador, claro e bem identificável.
As artes performativas bem como a literatura contemporânea expõem muito claramente a mudança da própria natureza do sujeito pós-moderno, que, segundo Stuart Hall, se diferencia do conceito de sujeito cartesiano, clássico autor de acções e pensamentos, mas define-se na própria multiplicidade das suas acções e nas conexões internas que ligam estas aos seus pensamentos e sensações. É este o conceito de indivíduo descrito também por Deleuze e Guattari10: um sujeito que aparece na concretização das suas relações. Sujeito e objecto não constituem, nesta lógica, entidades distintas mas sim uma única entidade complexa, e qualquer dinâmica entre estas duas posições é encarada na óptica duma acção comunicativa. Este sujeito pós-moderno parece ser de natureza pré-consciente, ou pré-lógica, uma vez que se assume a possibilidade deste percurso de subjectivização como alternativa ao conceito de sujeito fixo do cogito cartesiano. Abre-se a possibilidade de entender a explosão do território do privado como teatro, em que o sujeito define as suas dinâmicas, sobre as quais ele parece não ter controlo, ao estarem completamente desvinculadas de uma qualquer finalidade lógica pré-estabelecida.
O sujeito assim definido não é apenas uma individualidade entre uma multiplicidade de outros sujeitos, mas constitui também uma rede de relações e acções comunicativas que se cruzam com outras. O sujeito sai definitivamente de qualquer tipo de representação cartesiana ou definição dicotómica entre o seu privado e o seu público, porque é ele próprio um ponto de ligação, um lugar de troca. Uma vez que estas relações se destinam a deixar fluir a comunicação com os elementos externos, elas estão preferencialmente orientadas para o exterior, cumprindo, todavia, finalidades ora introvertidas, ora extrovertidas, ora auto-representativas do sujeito. As definições de público e privado têm sempre mais a ver com a direcção deste acto comunicativo e com a finalidade da sua mensagem. As artes performativas trabalham, neste sentido, duma forma totalmente transparente, representando a realidade como uma alteração de movimentos coordenados e descoordenados do homem em relação ao seu ambiente, assim como a evolução do homem numa procura instintiva de sincronia com o mundo e com os seres à sua volta.
O próprio corpo humano é rapidamente reinterpretado enquanto espaço de transição, de comunicação entre o íntimo e o público, que se torna superfície de exposição de formas artísticas diferentes e é até utilizado para a criação de obras artísticas viventes. Do lado mais espontâneo da vida social assistimos, no dia-a-dia, à própria transformação do corpo como palimpsesto gráfico-pictórico, que tem a tarefa de demonstrar a identidade da pessoa. A individualidade já não é algo que se procura apenas para si próprio, mas é algo que se afirma como uma acção sobre o corpo. Mais ainda, o corpo não representa apenas uma identidade real; o corpo afirma uma identidade desejada, a metapessoal do indivíduo11. É neste sentido que são utilizadas muitas vezes as práticas de decoração e reconstrução do corpo: desde tatuagens a piercings e até cirurgias estéticas, práticas hoje em dia tão físicas quanto sociais com múltiplos níveis de significado (Ferreira 2009). Como sublinham Blanchard (1994) e Sanders (1989), uma das principais funções da tatuagem e das acções de caracterização do corpo é a de identificação e afiliação a um grupo social. De acordo com Jill Fisher, estas práticas opõem-se a uma lógica capitalista de mercantilização generalizada, que pede uma contínua reconfiguração da identidade do corpo que se adeque à flexibilidade do mundo do capital. Estas acções poderiam, portanto, ser inscritas nas práticas de significação cultural, ao desenharem uma acção de oposição ao constante pedido de mutabilidade da moda, à qual opõem uma ideia de permanência e, logo, de compromisso, por meio da própria imagem, perante a própria identidade e a sociedade.
O corpo fala da pessoa e fala pela pessoa: representa a identidade da pessoa para quem não a conhece e filtra a interpretação que os “estranhos” fazem da pessoa para dar a impressão certa, ou, pelo menos, para não deixar que a pessoa passe despercebida num contexto público. O corpo torna-se instrumento de luta na necessidade de diferenciação numa sociedade homologada e desumanizadora, mas nesta defesa torna-se ele próprio corpo-máquina, corpo-habitus12, que se protege identificando-se, entrando em categorias sociais definidas ou manifestando simplesmente a sua não posição, não homologação. Por meio da manipulação do corpo, o indivíduo parece exercer uma libertação da sociedade e do seu poder sobre ele próprio, ao mesmo tempo que se insere numa outra comunidade de afiliação. A manipulação do corpo é uma afirmação daquele corpo como espaço privado, tirado à sociedade que sobre ele não tem poder de julgamento nem autoridade; é um acto de reapropriação e declaração de liberdade. Mas o corpo decorado, tatuado, acaba também por ser um palimpsesto de propaganda, que expõe a pessoa e a mercantiliza, definindo as suas qualidades ou ajudando a construir uma imagem dela que se imponha a quem a observa. Esta interpretação do corpo acaba por explicitar a sua multiplicidade de planos e denunciar a existência dum corpo privado e dum corpo social, dum mundo público e dum mundo privado que coexistem na própria pessoa e duma reivindicação do corpo privado face ao sujeito sociológico (Hall 1992, 276).
A acção sobre o corpo também vai definindo uma série de níveis intermédios, lugares de transição entre o público e o privado, determinados pela própria topologia da auto-exposição simbólica: os próprios lugares escolhidos pela decoração definem corpos diferentes, camadas diferentes, e são como “hábitos” escolhidos em relação a circunstâncias determinadas. Conforme o grau de “privacidade” da zona escolhida pela decoração, a mensagem simbólica será acessível a todas as pessoas ou a uma minoria mais seleccionada e “íntima”. O que importa é que a mensagem seja transmitida, que seja uma definição que funcione como apresentação mas também como alerta. Esta acção sobre o corpo é, portanto, ela própria produto de um conceito de corpo-objecto, apesar de nascer da ideia de oposição a esse mesmo conceito; poderíamos dizer que é uma tentativa de converter o símbolo corpóreo de estigma (Goffman 1975) em assinatura. A assinatura é, para Jacques Derrida, o elemento que permite a singularização do sujeito e, por isso, representa o primeiro passo para a modernidade e a conquista do valor pessoal do indivíduo: “[U]ma assinatura implica a não presença actual ou empírica do signatário. Mas, dir-se-á, marca também e retém o seu ter-estado presente num agora passado, que permanecerá um agora futuro portanto num agora em geral, na forma transcendental da permanência” (Derrida 1991, 431). Esta necessidade de assinar o próprio corpo se, por um lado, afirma uma ideia de posse, e de vigilância sobre ele – uma assinatura pela qual se identifica o legítimo proprietário do corpo –, por um outro lado, é sintoma ela própria de um perigo de ausência, de abandono, que prevê a existência de um momento em que o corpo se possa encontrar desprotegido. É neste momento e nesta distância/afastamento entre o corpo e o seu referente identitário que a assinatura encontra o seu significado. Ela declara a existência duma situação análoga àquela da realidade renascentista em que nasceu, a necessidade de controlar a própria imagem à distância. Antigamente esta imagem referia-se à obra feita pela pessoa, hoje ela refere-se à imagem do próprio indivíduo, que ele gere como um produto por ele criado.
Todavia, o fascínio pela massa anónima dos corpos humanos, pela “singular embriaguez desta comunhão universal” que as multidões estimulam (Baudelaire 1869), ainda existe algures, talvez num subconsciente colectivo, se bem observarmos o uso do corpo colectivo feito pelas artes na época actual e se tentarmos perceber como o valor do corpo nu, na sua representação de vulnerabilidade e transparência perante o mundo, se torna, no colectivo, imagem de força e de resgate da natureza humana. É este o caso, por exemplo, das instalações de corpos nus fotografadas por Spencer Tunick, nas quais o corpo é usado como unidade mínima na criação de arquitecturas humanas de grande escala e nas quais a nudez da multidão representa a superação dos limites do indivíduo; é símbolo de poder e de dignidade do género humano (Tunick 1998).
Na esperança de que este interesse pelas manifestações socioculturais da nossa época contagie os leitores, fecho esta apresentação breve e geral, ela própria um espaço híbrido que apenas pretendeu dar voz à algumas heterogéneas considerações subsequentes que aqui se reúnem.
Convido o leitor a visitar lugares virtuais, espaços de pesquisa, nem públicos, nem privados, divididos em cinco diferentes áreas:
“Público e privado: paradigmas em movimento” (Bernardo Carvalho, Thierry Paquot, Fabrice Rosa, Eunice Cabral);
“Espaços urbanos e domésticos” (José Pedro Regatão, Julien Glauser, Simona Gabrielli,
Vicente Paulino, Teresa Palma); “Outros Espaços: propostas para acção” (Marta Traquino);
“Representações do público e do privado na literatura, no teatro e no cinema” (Elena Butuşină, Susana Araújo e Sandra Bettencourt, Alda Maria Lentina,
Felipe Cammaert, Giuseppina Sapio, Elisabete Marques, Caterina Cucinotta) e “Novas fronteiras: a rede entre público e privado” (Robert W. Clowes, Sandra Lemeilleur, Pedro Andrade).
Quatro espaços de contínua negociação e de fluxo de conhecimento, que bem devem continuar a viajar entre estes dois pólos, pondo-os em diálogo produtivo e interminável.
Agradeço a todos os colaboradores que contribuíram para este volume tão rico, a todas as pessoas que inspiraram, nestes anos de pesquisa, a minha reflexão sobre o assunto. Entre eles, vou mencionar apenas três nomes: Álvaro Siza, pelas sábias palavras sobre arquitectura contemporânea, que me revelaram a importância desta arte como instrumento de leitura da sociedade e que me abriram a mente a uma visão nova do nosso mundo; Thierry Paquot, pelo apoio intelectual e humano na interpretação das minhas leituras; Helena Buescu, por me ter dado a oportunidade de partilhar, neste contexto privilegiado, os meus interesses e por me ter dado motivação e depositado plena confiança nas minhas escolhas.
Agradeço ao Centro de Estudos Comparatistas da Universidade de Lisboa a possibilidade de organizar esta publicação e agradeço a todos os colaboradores do volume o grande empenho e interesse demonstrados.
1 Veja-se também: Edward T. Hall. 1966. The Hidden Dimension . Garden City, NY: Doubleday.
2 A legalização do aborto foi adoptada por todos os países, com excepção da Cidade do Vaticano, da República de San Marino, Andorra e República da Irlanda. Em Portugal, a interrupção voluntária de gravidez foi legalizada em 2007.
3 Stefano Rodotá, jurista e político italiano, membro da assembleia parlamentar do Conselho da Europa entre 1983 e 1994 e primeiro presidente da autoridade administrativa independente com vista a garantir a protecção dos dados pessoais. Para uma descrição pormenorizada da questão da privacy na legislação europeia contemporânea, ver: Stefano Rodotà. 2007. Dal soggetto alla persona. Nápoles: Editoriale scientifica; 2012. Il diritto di avere diritti. Roma e Bari: Laterza.
4 Liraz Lasry, investigadora na área de marketing na Faculdade de Business Management da Universidadede Telavive: http://www.jtnews.net/index.php?/news/item/9647.
5. O Gallaratese é um dos maiores bairros em Itália construídos de raiz numa área antes inteiramente rural, entre os anos 60 e 80 do século XX. Hoje o bairro é habitado por acerca de 60.000 pessoas. Ponto fulcral do complexo do Gallaratese é a área do Monte Amiata, um centro habitacional desenhado por Carlo Aymonino e caracterizado por uma arquitectura de vanguarda.
6 Nos anos 60, autores como Jane Jacobs (1961) e Kevin Lynch (1960) já apresentavam a necessidade de planear espaços urbanos de convivência e de significado simbólico em resposta à sempre mais frequente organização da cidade em zonas separadas: esta tinha o propósito de reduzir a densidade dos centros habitados para evitar a difusão de eventuais epidemias, facilitar o trabalho de controlo, separar os prédios de habitação dos edifícios administrativos e comerciais, para preservar as condições de saúde e segurança da comunidade, afastando as áreas residenciais do perigo de fogos, contágio e desordem. As posições eram conflituais: alguns acreditavam na capacidade de as configurações urbanas gerarem ou possibilitarem formas de interacção social mais ou menos válidas; outros não acreditavam que o espaço tivesse um papel fundamental na criação de interacções sociais nem na capacidade de as configurações urbanas gerarem formas de interacção social mais ou menos válidas. Em 1961, Jane Jacobs, em The Death and Life of Great American Cities , define quatro “geradores de diversidade”, ou seja, elementos que podem garantir melhores condições de vida no contexto urbano. A definição destes quatro princípios – variedade de serviços básicos, escala reduzida de bairros e quarteirões, presença de edifícios históricos, equilibrada densidade habitacional – baseia-se no equilíbrio entre a esfera pública e a esfera privada como centro do bem-estar da comunidade e como garantia de variadas condições de encontro e recíproca influência entre estes dois âmbitos.
7 Sobre este tema, veja-se também: Andrea Branzi. 2006. Modernità debole e diffusa. Il mondo del progetto all'inizio del XXI secolo. Milão: Skira.
8 Ver também: Didier F. Faustino. 2010. Evento 2009 – Intime collectif/Collective Intimacy. Exhibition Catalogue of the Bordeaux Art Biennale. Bordéus: Monografik éditions/Blou.
9 Cénario, situação teatral.
10 Deleuze e Guattari, em Antioedipus (1977), afirmam a não existência de um Sujeito e a existência unicamente das suas acções, ligadas, entre elas, por encadeamentos automáticos. Estes encadeamentos são de origem libidinal inconsciente: exprimem o desejo do rizoma fixado no sujeito. O rizoma, conceito introduzido por Deleuze e Guattari (1980), é diferente duma raiz e é mais similar a um bulbo, e tem a característica de se expandir em todas as direcções; portanto, qualquer um dos seus pontos pode ligar-se a outros. É, para os dois filósofos, exemplo de multiplicidade: “Le rhizome ne se laisse pas ramener ni a l’Un ni au multiple. Il n’est pas fait d’unités mais de dimensions, ou plutôt de directions mouvantes. Il n’a pas de commencement ni fin, mais toujours un milieu, par lequel il pousse et déborde. Une telle multiplicité ne varie pas de dimensions sans changer de nature en elle-même et se métamorphoser. [...] Un rhizome ne commence et n’aboutit pas, il est toujours au milieu, entre les choses, inter-être, intermezzo” (Deleuze e Guattari 1980, 36). No ser humano, estes encadeamentos são, para Deleuze e Guattari, a parte realmente estruturante. O subconsciente, para Lacan, é a soma destes encadeamentos, e ter colocado um sujeito (Es) na origem destes encadeamentos foi, nesta lógica, o engano freudiano. De facto, para Deleuze e Guattari existiriam apenas os encadeamentos. Freud transforma o rizoma do individuo num sujeito da sociedade, que exprime, no seu mau estar, a sua incapacidade de se anular na sociedade. Quando esta matéria sensorial/emocional não tem forma, encontra-se no plano de consistência que é definido como um Corpo sem órgãos, e o seu conteúdo deriva das construções operadas neste plano de consciência.
11 “What is distinctive in contemporary tattoo practices is the linking of such assertions of permanence to ideas of the body of property and possession – ‘a statement of ownership over the flesh’, as one individual put it – indeed as the only possession of the self in a world characterized by accelerating commodification and unpredictability, ‘the one thing you get in a culture where you are what you do’” (Benson 2000, 251).
12 Habitus (latim), de Habere, verbo – ter –, significa “modo de ser”, disposição, e, no plano físico, aparência, figura, e também vestimenta, ou seja, tudo a que estamos acostumados a ter e levar connosco habitualmente.
OBRAS CITADAS
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